segunda-feira, 13 de abril de 2009

Trecho de Comentário sobre Acórdão nº 743/96 do Tribunal Constitucional Português

(...)
Assentos
2.1.Noção
Doutrina majoritária remonta a origem dos assentos aos antigos assentos da Casa de Suplicação, desde a época das Ordenações Manuelinas (1514-1603). Já no § 5º, título V, livro 1º das Ordenações Filipinas era prevista a possibilidade dos Desembargadores, face a uma dúvida de aplicação da lei, levá-la ao Regedor para dirimí-la, donde seria escrito no livro da Relação para que mesma dúvida não fosse novamente suscitada.[1] Observa-se aí forte submissão do Judiciário ao Executivo. Os velhos assentos eram interpretação autêntica e tinham, como tais, força de lei[2]
Na primeira metade do século XVIII, sob o influxo dos ideais liberais e da doutrina da separação dos poderes[3], bem como a transformação da Casa de Suplicação em Supremo Tribunal de Justiça, o contexto favoreceu para a retirada da competência para edição de assentos.[4]
Entendeu-se que, posicionando o Supremo no topo da hierarquia judicial, seria suficiente para garantir a «uniformidade da jurisprudência» perdida com a retirada dos assentos. Entretanto, em curto prazo, percebeu-se a existência de uma variação significativa no entendimento jurisprudencial e que causava certa incerteza jurídica.
Tornou-se a dispender esforços em busca de uma alternativa que, a um só tempo, garantisse a uniformidade jurídica, sem imobilizá-la e que não ferisse a separação dos poderes. Uma solução apresentada por Alberto Reis, que veio a viger com o Código de Processo Civil de 1939, consistia em vincular os tribunais à doutrina dos acórdãos do Supremo decididos no pleno, enquanto o tribunal, através do pleno, não se manifestasse em sentido diverso. Muito embora a legislação não fizesse referência nenhuma, o certo é que, a partir de 16 de Dezembro de 1927, o Supremo Tribunal de Justiça passou a proferir assentos.[5]
Cumpre notar que este instituto era bem diverso do assento das Casas de Suplicação. Estes tinham força legislativa; os acórdãos do Supremo vinculavam somente tribunais, verdadeiras «jurisprudências qualificadas» passíveis de alteração em certas condições.
O Código de Processo Civil de 1961, ainda hoje em vigor, relativamente ao recurso para o tribunal pleno e à uniformização da jurisprudência, manteve, na sua quase globalidade, o sistema instituído pelo Código de Processo Civil de 1939, mas eliminou faculdade concedida ao Supremo Tribunal de Justiça de alterar a doutrina fixada nos seus assentos, ceifando a possibilidade de uma «unidade progressiva da jurisprudência».
Em 1966, foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 47344, o Código Civil, atualmente em vigor, o qual dispõe no artigo 2º, do modo seguinte: Nos casos declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral. Isto tornou a prescrição do art. 769º do CPC inútil, pois, por certo, a vinculação dos tribunais estava abrangida pela «força obrigatória geral».
Pelos assentos, cabia ao Supremo Tribunal de Justiça, quando deparado com um conflito de jurisprudência que respeite os requisitos processualmente definidos, resolver definitivamente através da enunciação de uma prescrição jurídica que passa a valer para o futuro como preceito normativo geral e abstracto e dotado de força obrigatória geral.

2.2 Competência para Edição
Supremo Tribunal de Justiça através do Tribunal Pleno.


2.3 Justificativa
Com a supressão dos assentos da Casa de Suplicação, deu-se conta de uma indesejada jurisprudência variada, flutuante, incerta, e que ganhava força na tendência individualista de liberdade de opinião do magistrado, a qual fora considerada um mal-grave. Assim, o que com os assentos se visa a garantir é, do específico para o mais geral: uniformidade da jurisprudência, unidade do direito; e segurança jurídica.
Numa ótica luhmanniana, é de se compreender que o sistema quando ganha em complexidade, aumenta as possibilidade de respostas. Essa pluralidade faz com que as expectativas diante dessas possibilidades gerem uma sensação de incerteza, de modo, que o próprio sistema tende a se auto-diferenciar, elegendo uma resposta, em detrimento das outras.[6] Segundo Luhmann, essas “estruturas de expectativas podem ser institucionalizadas, ou seja, apoiada sobre o consenso esperado a partir de terceiros. Dada a crescente complexidade social isso exige cada vez mais suposições fictícias sobre o consenso e também a institucionalização do ato de institucionalizar através de papéis especiais.”[7] É possível compreender que os assentos tenham surgido com essa necessidade de auto-diferenciação do próprio sistema jurídico, para conter a instabilidade gerada pelas expectativas, através de uma antecipação desta.[8]

2.4 Natureza
Os autores têm-se dividido, essencialmente, entre aqueles que caracterizam o instituto como mera expressão de jurisdictio[9] e aqueles que lhe atribuem dimensões inequívocas de legislatio[10], se bem que alguns outros hajam proposto vias intermédias para tal definição conceitual.[11]
Para aqueles que entendem tratar-se de típico «ato legislativo», afirma-se que “os assentos se apresentam com carácter prescritivo, constituindo verdadeiras normas jurídicas com o valor de «quaisquer outras normas do sistema», revestidas de carácter imperativo e força obrigatória geral, isto é, obrigando não apenas os tribunais, mas todas as restantes autoridades, a comunidade jurídica na sua expressão global.”[12] É como pensa Castanheira Neves, para o qual, aos assentos se reconhece legalmente com o carácter de «fonte de direito».[13]
Cumpre-nos questionar se o caráter normativo dos assentos obrigatoriamente remete à natureza de «legislatio». O jusracionalismo iluminista, notadamente em França, conjugou de forma quase incindível a normatividade e a legalidade, de modo que para muitos até hoje, é difícil vê-las se manifestarem dissociada. Tanto é que para Rousseau “toda a função que se refere a um objeto individual não pertence ao poder legislativo.”[14] Desse modo, a lei seria um procedimento para a emissão de imperativos preceptivos expressão da vontade geral. E para que essa vontade geral não instituísse privilégios deveria sempre se expressar sob a forma de uma norma (generalidade e abstração) (ato do povo para todo o povo).
Entretanto, tal paradigma foi rompido, pois hoje é perfeitamente possível conceber leis que não se expressam através de normas (p.ex., as leis-medida), bem como normas que não se expressam através de uma lei (p.ex., jurisprudências vinculantes, como é o caso do modelo anglo-saxão e alemão, anterior ao BGB-1900). Para Canotilho, o «conceito de lei» é “tendencialmente vazio no plano material e apenas caracterizável pela forma, procedimento e força jurídica.”[15] É, portanto, uma forma e um procedimento, emitido por um órgão dotado de competência legislativa.
Veja-se que o simples fato de se afirmar que os assentos possuem caráter normativo não é o suficiente para atribuir-lhe a natureza de legislatio. Inclusive, Kelsen compreende que “a aplicação do Direito é simultaneamente produção do Direito. É desacertado distinguir entre actos de criação e actos de aplicação do Direito. Com efeito, se deixarmos de lado os casos-limites – a pressuposição da norma fundamental e a execução do acto coercitivo – entre os quais se desenvolve o processo jurídico, todo o acto jurídico é simultaneamente aplicação de uma norma superior e produção, regulada por esta norma, de uma norma inferior.”[16] Há uma graduação de generalidade e abstração desde a instituição do ordenamento até o último ato executório, de modo que o juiz quando decide, também expressa uma norma, muito embora com um grau de generalidade e abstração menor que o legislador ou que o constituinte.
Para os que entendem tratar-se de jurisdictio, o assento é o "preceito que coroa a decisão do caso concreto" com "força genérica", não a própria decisão do caso concreto ou o conteúdo normativo casuístico dessa decisão. Extrai-se a ratio decidendi dos casos, e seleciona-se uma interpretação que não pode desvincular-se do estabelecido na lei, e que tenha força vinculativa para os casos futuros.
Em verdade, é possível verificar, sim, uma normatividade (generalidade e abstração), mas não diretamente um legislatio, pois não se trata de um ato que, procedimentalmente se manifeste como a vontade de todos (não possui legitimação democrática). Para que se admita a existência dos assentos, sem ferir a separação dos poderes, é preciso que eles não se manifestem como expressão de uma vontade soberana, mas sempre subordinado a um sentido da lei, nunca em conflito com ela.

2.5 Atributos
2.5.1 Normatividade
Como se constatou alhures, os assentos possuem um caráter normativo. O Tribunal Constitucional também já havia reconhecido no acórdão nº 40/84: "o carácter normativo dos assentos é, na verdade, irrecusável, face ao disposto no artigo 2º do Código Civil, segundo o qual os tribunais podem fixar `doutrina com força obrigatória geral'". É uma normatividade que não deriva da legalidade, mas da fixação judicial de doutrina.
Dizer que determinada prescrição tem caráter normativo implica que tal preceito seja imperativo, geral e abstrato. Para Kelsen, as normas jurídicas devem estipular um ato coercitivo.[17] Essa compreensão é importante para perceber a extensão do raio de aplicabilidade dos assentos. Quando se diz que eles possuem força obrigatória geral, quer dizer que a sua obrigatoriedade não se limita aos tribunais ou administração pública[18], mas estendem-se aos privados. Por exemplo, as companhias de seguro não podem deixar de obedecê-lo; bem como os notários, conservadores de registro predial ou comercial, etc.
Quanto à abstração, é ainda perceptível, mas de uma forma menos intensa que na lei. Esta antecipa-se soberanamente aos fatos, e estabelece uma regulação. Os assentos têm sempre que estar em conformidade com as leis, e fixam uma doutrina que passa a valer para os casos que o sucedem. De todo modo, há uma antecipação da resposta a ser dada ao caso concreto.
O artigo 2º também havia consagrado a sua obrigatoriedade, e que traduz a imperatividade do preceito.
2.5.2 Publicidade
Para se lhes ser conferido força obrigatória geral, os assentos haveriam de ser publicados no Diário da República (CRP, Art. 119º, nº. 1, g), antigo art. 122º)
2.5.3 Efeitos
A questão da amplitude dos efeitos vinculativos dos assentos menifestam diferentes possibilidades, desde a mais ampla até a ineficácia completa.
A mais ampla seria a contemplada pelo art. 2º do Código Civil, em que teriam força vinculativa geral, colocando-se em pé-de-igualdade à lei, com status de fonte do direito. Vinculariam os tribunais, a administração e inclusive os particulares.
Em um grau inferior, vislumbrou-se a possibilidade de vinculação apenas dos tribunais (Vincularia também o TC); ou em uma um pouco mais restrita, apenas os tribunais hierarquicamente inferiores. Crítica feita por Campos da Costa a esse ponto de vista, reclama que de uma forma ou de outra uma decisão que vincula aos tribunais sempre irá vincular ao cidadão, que em última hipótese irá recorrer ao tribunal para garantir o seu direito[19].
Por último, defende-se que os assentos não devem vincular ninguém além do próprio órgão emissor, sob pena de violar a independência decisória dos juízes.
O Tribunal Constitucional, ao interpretar o Art. 115º, nº 5, da CRP, acatou a tese de que os assentos não têm eficácia vinculativa geral, limitando-se a vincular os tribunais hierarquicamente ligados.
2.6 Espécies
Na fundamentação, o Tribunal Constitucional distinguiu duas espécies de assentos.
Interpretativo: Segundo o TC, ainda que o assento tenha como base a interpretação de uma norma, diante de suas várias possibilidades, esta sofre uma profunda recomposição: “é uma nova norma, deste modo recomposta, que passa a existir no direito positivo. Há pois como que uma fusão entre a norma atingida e a norma do assento que a modula”.
Integrativo: nos casos em que preenche uma lacuna do sistema e cria a norma correspondente, para depois fazer aplicação dela ao caso concreto (assentos integrativos). O assento integrativo não opera em termos de traduzir uma reconstrução entre uma norma existente e a norma que nele se institui, representando antes uma norma inteiramente original que preenche uma lacuna do sistema em conformidade com as regras gerais da integração da lei definidas no artigo 10º do Código Civil.
Deste modo, entendeu o Tribunal Constitucional, sendo função dos assentos interpretar ou integrar autenticamente as leis, a norma que lhes atribui força obrigatória geral, não pode deixar de incorrer em colisão com o artigo 115º (hoje 112°), nº 5 da Constituição.
Entretanto, se tomarmos em consideração o pensamento de Kelsen, ou de Olivier Jouanjan[20] quanto a criação e aplicação do direito, admitindo-se que o juiz, sempre que aplica o direito, acaba por criá-lo, qualquer decisão proferida no caso concreto seria também uma recriação da norma. Pois bem, é admissível, nesse modo, a existência de assentos integrativos e interpretativos, já que a atividade criativa é sempre inerente à aplicação. Mas não podem, entretanto, desvirtuar-se do sentido da lei.

[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol., VI, Coimbra, 1981, p. 234
[2] Cfr. Acórdão TC nº 810/93
[3] Conforme Horst Dippel, a Constituição assumia, na Europa, um valor distinto em relação à América, pois os cidadãos e os seus direitos, o próprio direito como expressão da liverdade, igualdade e razão, mas também o conjunto do povo soberano, legitimado para impor a sua vontade no sentido do princípio da soberania democrática, assumiam um papel claramente mais central.(Dippel, História do Constitucionalismo Moderno, p.58) Veja também Lucien Jaume, La Liberté et la Loi, Los origines philisophiques du libéralisme, Paris, fayard, 2000, max.336-344.
[4] Deliberação tomada em Mesa", considerou "não poder esta, depois da nova ordem de cousas, tomar Assentos sobre a intelligência de qualquer Lei, sem huma nova Delegação do Poder Legislativo", pois que, "os Assentos contém decisões legaes, e constituem parte da nova Legislação" e por isso pertencem "à competência privativa e própria do Poder Le­gislativo" que na vigência da Ordenação residia nos reis, mas, porque, "as cousas estão mudadas" e tal poder foi reassumido pela Nação em toda a sua plenitude e integridade, deixou a Casa da Suplicação de dispôr de competência para "tomar Assentos", devendo "as Partes e os Juízes nos casos duvidosos recorrer ao mesmo Poder" (cfr. Auxiliar Jurídico, cit., vol I, pp. 317 e 318 apud Acórdão TC nº 810/93).
[5] CORREIA, A. Simões, Assentos do Supremo Tribunal de Justiça, Lisboa, 1964 apud Acórdão TC 810/93
[6] “Las decisiones deben cotematizar la selectividad de su relación com otras decisiones. Esto han de hacerlo entonces com una perspectiva doble de selección: eligen no sólo una de varias alternativas, sino que hacen esto en vistas a que, a través de ello, éstas producen o impiden relaciones com otras decisiones” (Niklas Luhmann. Organización y decisión. Autopoiesis, acción y entendimiento comunicativo, Barcelona, Anthropos Editorial, 1997, p. 16)
[7] LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.p 109.
[8] Como diz Luhmann: “Our next point concerns the possibility of increasing the insecurity that cna be accepted and, along with it, the possibility of antecipating more expectations and giving improbable expectations a structuring function” ( Luhmann, Niklas. Social Systems. Stanford: Stanford University Press, 1995, p. 320)
[9] A favor da qualificação dos assentos como actos de natureza jurisdicional se pronunciaram, além de outros, Martins de Carvalho, ob. cit. pp 39 e ss.; Afonso Queiró, Lições de Direito Administrativo, Coimbra, 1976, pp. 386 e ss., Fernando Olavo, Gazeta da Relação de Lisboa, ano 47º, p. 81; Ernesto de Castro Leal, O Problema da Aplicação da Jurisprudência no Tempo, Revista da Ordem dos Advogados, ano 1º, p. 536; J. Alberto dos Reis, Anotado, cit., vol. VI, pp. 233 e ss.; Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Lisboa, 1973, Tomo I, pp. 122 e ss., e Jorge Miranda, ob. loc. cit.,
[10] Veja-se Ferrer Correia, Disposições a favor de terceiros em convenções antenupciais, pp. 51 e ss.; Pires de Lima - Antunes Varela, Noções Fundamentais de Direito Civil, vol. I, Coimbra, 1965; Oliveira Ascensão, A tipicidade dos direitos reais, p. 253.
[11] O Tribunal Constitucional já havia decidido que "a fixação de doutrina com força obrigatória geral operada através dos assentos, traduz a existência de uma norma jurídica com eficácia erga omnes, em termos de, quanto a ela, ser possí­vel o accionamento do processo de fiscalização abstracta suces­siva de constitucionalidade" (cfr. Acórdãos nºs 8/87 e 359/91, Diário da República, I série, de, respectivamente, 9 de Feve­reiro de 1987 e 15 de Outubro de 1991).
[12] (TC 743/96)
[13] NEVES, Castanheira A. Digesta. Vol. 3º. Coimbra: Coimbra Editora, 2008.p. 339 . “«Vinculação normativa geral própria das fontes de direito»”.
[14] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 48. (Capítulo VI. Da Lei)
[15] CANOTILHO, ob. cit., 2003. p. 553.
[16] Hans Kelsen citado em MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p 341
[17] KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad. Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 62.
[18] Como é o regime das súmulas vinculantes no Brasil. Lei. 11.417/2006.
[19]CAMPOS DA COSTA, Américo. Ainda sobre a Inconstitucionalidade dos Assentos. Revista Tribuna da Justiça, nº02. Fev-Mar, 1990.
[20] LA Théorie structurante du droit, JOUANJAN, Olivier. Avant dire droit: la texte, la norme, et le travail du droit. Collection Dike, Quebec, 2008.

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