segunda-feira, 13 de abril de 2009

Imunidades Parlamentares e a nova concepção de separação de poderes

Trecho de paper apresentar na disciplina de Instituições do Poder Político, do curso de Mestrado em Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Da Passagem do Estado Liberal ao Estado Constitucional

Para se fazer a apreciação das imunidades constitucionais, e em particular as imunidades parlamentares, é indispensável compreender a passagem do Estado de Direito de matriz liberal para o Estado Constitucional de matriz liberal-democrática.
No Estado de Direito liberal, entendido como o Estado sob a lei, o parlamento representa a vontade popular e a lei é a manifestação dela. É esta, pois, que irá por limites à própria atuação do Estado, principalmente a do poder executivo.
Esta concepção, ligada à ideologia constitucional liberal de um Estado em que a administração seja subordinada à lei, os direitos dos cidadãos limitados somente pelo ato legislativo e juízes sujeitos unicamente à lei, é tradicionalmente caracterizada pela presença de três elementos, fornecidos por R.BIN: 1) Separação dos poderes; 2) afirmação do princípio da legalidade; 3) tutela dos direitos de liberdade e do princípio da igualdade.[1] Assim, durante o século XIX, na base da construção do Estado de direito liberal estava a concepção da “lei como elemento unificador do sistema político e social, fundamento de toda atividade pública dos poderes, e que deveria achar nela todo o seu pressuposto.[2]
Neste contexto o ‘mito liberal’ da lei geral e abstrata, igual para todos, se utilizava do pensamento jacobino da representação da ‘vontade geral’ através da supremacia do poder legislativo[3]. E isto se fazia imperativo, ao tempo, por causa da estrutura social, caracterizada por uma tendencial uniformidade e da ausência de pluralismo social, o qual só começa a ser perceptível ao fim do século XIX, quando iria pôr em crise a concepção liberal do estado.
O panorama muda significativamente com a queda dos impérios europeus, após a primeira guerra mundial e com a afirmação dos partidos de massa. A uniformidade “positiva” do Estado liberal entra em crise frente a uma complexidade social, que já não se faz representar. Esta passagem, como afirma GIUPPONI, em realidade bem mais complexa, é evidenciada na tentativa de afirmação do princípio supremo contido numa fonte especial (a Constituição), que se põe a vincular e regular a atividade de todos os poderes públicos, inclusive o Legislativo.[4]
Toma aí início o desmoronamento do mito liberal da ‘soberania da lei’ ou do parlamento, que teve que se subordinar ao princípio constitutivo de todo o ordenamento estatal. É Justamente na tentativa de racionalizar a dinâmica institucional e social que entra em cena a Constituição, sobrepondo-se a legalidade parlamentar.
Atualmente, alerta GIUPPONI, a constitucionalização positiva do princípio fundamental (como o princípio da igualdade, da separação dos poderes e a inviolabilidade dos direitos fundamentais), agora se põe com força o problema de criar uma base para a renovada legitimação racional do exercício do poder, dentro de uma sociedade complexa e articulada, inspirada no cânone da democracia pluralista e baseada em princípios e valores, considerados formalmente e materialmente mais elevados do que na legislação ordinária[5]. É por isso que se faz imprescindível pensar em um sistema ainda mais complexo e racionalizado de ‘freios e contrapesos’, superando a superioridade da legitimidade e legalidade típica do Estado de direito liberal, inspirado no cânone da representação política.[6]
Superada a idéia da superioridade parlamentar, nos Estados Constitucionais modernos, os princípios e valores estão abrigados na própria constituição, que divide e estabelece limites para o próprio exercício do poder, bem como estatui os direitos fundamentais do indivíduo, indo além ao determinar condutas positivas e dirigentes da atuação do Estado.
A legitimidade de todo o sistema, desta feita, não é mais representada somente pela legalidade, mas às finalidades, valores e princípios sacramentados na Constituição, caracterizada por um procedimento mais rígido de modificação, bem como pela individualização de uma instância responsável pelo controle da constitucionalidade.[7]
A diferença do ocorrido no século XIX é que no Estado Constitucional a soberania não se encontra repartida entre os órgãos centrais do poder (monarca – parlamento). Também perdem sua caracterização como instâncias representativas de grupos sociais. Desaparecem os pressupostos que faziam possível o equilíbrio social de poderes característico das monarquias constitucionais e a doutrina de Montesquieu deixa de ser um “postulado da realidade” para converter-se em um princípio jurídico enfaticamente proclamado por todos os textos constitucionais.[8]
Pode-se a princípio alardear uma crise de soberania. Pois como é possível admitir a superioridade de um documento em detrimento, inclusive, daquele órgão que é eleito diretamente pelo povo para elaborar as leis? É nesse encalço que ganha relevo a distinção entre poder constituinte e poder constituído. Aquele tem o poder de elaborar a constituição; este, que decorre da elaboração da constituição, tem a função de fazer cumpri-la. Mas quem seria, então, o titular do poder constituinte? Para Canotilho, essa questão hoje não pode ser vista se não pelo viés democrático, de modo que a titularidade deste poder recai sobre o povo. E o povo, nas democracias atuais, concebe-se como uma “grandeza pluralística”. Quer com isso dizer que entende povo uma pluralidade de forças culturais, sociais e políticas tais como partidos, grupos, igrejas, associações, personalidades, decisivamente influenciadoras da formação de “opiniões”, vontades, correntes ou sensibilidades políticas nos momentos pré-constituintes e nos procedimentos constituintes.[9] O povo assim entendido, está distante do sentido jacobino e do liberal-conservador, mas agora num sentido político, em que o doutor Canotilho explicita como grupos de pessoas que agem segundo idéias, interesses e representações de natureza política. Abandona-se, portanto, o “mito da subjectividade originária” (povo, nação, Estado). [10]
Problemática desenhada, Eloy Garcia alerta que a conciliação da teoria da separação dos poderes e o princípio democrático não é tão simples assim. O princípio democrático deriva de um particular entendimento do conceito de soberania que leva implícito a separação entre poderes constituídos e constituinte. Ainda que depois de aprovada a Constituição, o povo continua ainda sendo a única fonte legítima poder. “A essência do parlamentarismo moderno consiste na aplicação política do princípio majoritário, ou em sua tradução em termos de governo. O povo vota, os elegidos se reúnem, nomeia e formam o governo.”[11]
Entretanto, a simples assunção do princípio maioritário ainda não responde à problemática, porque as minorias continuam também a integrar o conceito de ‘povo político’.[12] Não se pode esquecer ainda aqueles que não são cidadãos, mas constituem o conceito de povo acima definido. Diante dessa pluralidade, o conceito de maioria e minoria só pode ser entendido de forma dinâmica, não absoluta, pois já não há mais uma homogeneidade nos grupos sociais. Uma maioria se obtém por forças de coalizão que têm interesses e conveniências contempladas em certo momento político.
Surge uma contradição entre norma jurídica e realidade política. Em uma perspectiva normativa diz-se que os órgãos são diferentes em sua composição e funções; e dos poderes reais (maioria e minoria – maioria geralmente elege o executivo e o Judiciário – Tribunal Constitucional). Estado Constitucional viria a se caracterizar pela existência de um só poder – o povo, como já foi dito acima – e uma divisão de poderes de nada valeria e tampouco a existência de imunidades parlamentares.
Contra as aparências, Eloy García Lopez defende que o Estado Constitucional Democrático ainda mantém viva a idéia nuclear do pensamento político de Montesquieu, graças a que os mecanismos jurídicos da divisão dos poderes se complementam, e de certo modo se confundem, com um sistema interno de pesos e contrapesos de tipo político que “limita consideravelmente o poder da maioria”. Acaba por usar uma expressão de Sternberger para conceituar essa nova leitura: “a divisão vital do poder”- entendida como a confrontação institucionalizada que continuamente se está forjando no seio de um estado democrático de governo e oposição, confrontação que só pode ser marcada de institucional na medida em que o poder assegure à minoria uma série de direitos e garantias, que dão forma a um ‘estatuto da oposição’, assumindo relevante papel as imunidades parlamentares.[13]
Segue Nuno Piçarra dando-nos a dica de que, na sua dimensão jurídico-funcional, o princípio da separação dos poderes deve continuar a ser encarado como princípio de moderação, racionalização e limitação do poder político-estadual no interesse da liberdade. Segundo ele, isto constitui o seu núcleo imutável.[14]

Feita uma releitura da teoria de Montesquieu pela ‘ideologia democrática’, é possível concordar com Eloy García Lopez quando este afirma que caberia dizer que em nossos dias a doutrina da divisão dos poderes continua proporcionando à imunidade parlamentar um suporte suficiente para justificar sua inclusão nos textos constitucionais. Ademais, o professor Complutense, atribui-lhe duas funções concretas: de uma parte, a de servir como mecanismo jurídico de defesa das decisões do poder constituinte frente às previsíveis inclinações expansivas dos poderes constituídos; de outra, a de atuar como instrumento de garantia dos direitos da oposição.[15]
É de se notar que grande parte dos pressupostos que fundamentaram às imunidades parlamentares foram significativamente alterados, e resultam absolutamente incompatíveis com a moderna democracia de partidos. [16]
Uma dessas grandes mudanças, já citada pelo doutor Canotilho é o Pluralismo democrático. O parlamento não mais se apresenta homogêneo - o representante do terceiro estado oitocentista – mas sim como uma verdadeira assembléia plural e que tem o palanque estendido, atualmente, pelos meios de comunicação e da rede mundial de computadores. Na verdade o parlamentar não mais tem o único receio de sofrer abusos unicamente do executivo, mas, inclusivamente, de seus pares parlamentares, mormente quando integrante da minoria (ou oposição). Ganha importância as imunidades parlamentares como garantias contra abusos dentro do próprio parlamento, da maioria contra a minoria, ou de um grupo de parlamentares contra um parlamentar singular.
Merece atenção um fato recorrente nas atuais democracias. Em regra o poder se concentra no partido que obteve a maioria nas eleições e que forma. Nos países parlamentaristas ainda se torna mais evidente, uma vez que é a maioria do Parlamento que elege o primeiro ministro, responsável pelo exercício das funções típicas do poder executivo. Nos regimes presidencialistas, geralmente, o Presidente da República também possui a maioria no governo para garantir a governabilidade. O parlamento não é mais visto somente em contraposição ao executivo, mas sim como seu colaborador. Permanecem, entretanto, a parte disso, os parlamentares representantes da minoria (ou oposição), que notadamente devem estar imunes à manifestações abusivas da maioria.[17]Isso reforça a idéia e a necessidade de manutenção das imunidades parlamentares, mas não obrigatoriamente nos moldes do século anterior.
Por outro lado, o sistema constitucional provisiona o estado de outros meios de defesa de direitos e liberdades, até mais seguros que o próprio regime das imunidades, que é através do âmbito judicial. Nesse aspecto, cabe ressaltar o fortalecimento do poder judiciário, que era antes visto como uma marionete do executivo, hoje assume posicionamento independente e dotado também de algumas imunidades que lhe garante independência nas decisões.
Acrescente-se a esta nova realidade a criação de um Ministério Público como custos legis e defensor dos interesses coletivos. Tal órgão, que a doutrina ainda reluta em confiar-lhe a feição de poder, possui atribuições de fiscalização e persecução não imagináveis por Montesquieu. O Parquet vem reforçar o cumprimento da Constituição e das demais leis, inclusive de poder contra poder, de modo a sempre estar atento a eventual abuso.
No âmbito da política, realça ainda, o surgimento de uma nova forma representativa, novo modelo de relação entre representantes e representados, em que o partido político se aparece como intermediador; nova estimativa do discurso parlamentar; surgimento de novos instrumentos de ação política com a conseguinte desvalorização do parlamento como instância decisória.[18] Quanto ao crescimento dos partidos, o autor chega a afirmar que contemporaneamente se está em um Estado de Partidos e um Estado que “encaixa” em órgãos seus grupos de interesse de tipo neocorporativo, que nele exercem funções inequivocamente políticas. E é quanto a esse ponto que Nuno Piçarra vai questionar se o princípio da separação dos poderes pode ser chamado a reger, como sucedâneo da “constituição mista”[19] os equilíbrios de partidos e/ou de grupos de interesse a nível estatal.[20]
Na verdade, acaba por ser impossível correlacionar os partidos políticos e os grupos de interesse com os poderes estatais, sendo impossível resgatar a dimensão político-social do princípio da Separação do Estado – Sociedade, e o próprio autor reconhece tal impossibilidade. Primeiro porque a sociedade não mais se encontra estratificada a tal ponto de se ver uma homogeneidade nos grupos de interesse como se via no século XVII e XVIII (rei, nobreza e terceiro estado). Também os partidos políticos, principalmente nos países pluralistas como é o caso do Brasil e Portugal, acabam por não reduzir toda a sociedade em estamentos, sem obter, assim, legitimação para a titularidade de um órgão de soberania.
São estas algumas modificações sociais, políticas e jurídicas que implicam uma mudança da compreensão da atual doutrina da separação dos poderes e, por conseguinte, do regime das imunidades parlamentares. Não é mais possível concordar com todos os termos destas nos moldes oitocentistas, pois os pressupostos já não são os mesmos, além de algumas dessas garantias, em certos casos, mais aparentarem privilégios do que propriamente prerrogativas. Não se defende, entretanto, a abolição completa das imunidades, mas não se deve negar que as mesmas precisam ser adequadas à realidade jurídica basilar e aos pressupostos fáticos que pretende regular, sob pena de serem massacradas pelo descrédito que já as corrói.
Essa análise só poderá ter algum sucesso se for feita uma análise individualmente das modalidades de imunidades – irresponsabilidade e inviolabilidade – face aos novos pressupostos apontados acima, contrapondo aos pressupostos fáticos e jurídicos que motivam o descrédito de tal instituto – impunidade e privilégio.
Não são poucos os autores que apontam que a semelhança - imunidades à impunidade – não é meramente vocabular, e não são poucos os que defendem a extinção das imunidades. A questão da extinção se põe num momento de ponderação pré-jurídica e que a doutrina tem se referido como uma ‘crise política’.[21]
Revogação da inviolabilidade, uma possibilidade? Dentre as modalidades de imunidades, aquela que já se encontra mais próxima à berlinda é a inviolabilidade. Isto porque é um instituto político inserido no contexto processual, mas que não excluem a antijuridicidade do ato do deputado, apenas impedem o andamento processual enquanto dure o mandato parlamentar. Querendo ou não, gera uma situação de impunidade mesmo que temporária, quando não eterna, visto que os deputados mantêm-se no poder enquanto possam-se reeleger. Portanto, colocando a inviolabilidade num momento pré-jurídico, pertencente à política, em que o legislador constituinte ainda estaria por optar pela inclusão ou não deste instituto no ordenamento jurídico, avaliar-se-á a sua indispensabilidade no ordenamento.
A partir desse ponto, o legislador tem duas opções didaticamente expostas: ou a elimina por completo; ou a mantém. Optando por manter, o conteúdo variará em razão do tempo, lugar, situação, compreensão política e jurídica, de modo que acaba sendo mais difícil de se analisar sem um estudo de direito comparado bem abrangente e que não comportaria no interior deste trabalho. Neste caso, pode se dividir a inviolabilidade com base no critério da regra geral/excepcionalidade em que se decide sobre o levantamento. Poderá ser regra geral – quando só é possível processar o parlamentar se houver o levantamento da inviolabilidade (licença prévia); excepcionalidade – em que se processará o deputado, desde que a inviolabilidade não seja concedida (pedido de suspensão do processo).[22] A opção pelo segundo poderá gerar provocar uma mudança de concepção, em que a inviolabilidade passa ainda a ser uma garantia, mas vista como exceção. É o caso da legislação brasileira após a Emenda Constitucional n° 35/2001.[23]
Numa posição mais radical, alguns autores defendem mesmo a completa extinção da imunidade formal. Interessante seria indagar quais as conseqüências de uma possível extinção da garantia de ‘improcessabilidade parlamentar’, numa posição independente e abstrata, inicialmente neutra, mas que levasse em conta o atual contexto político social e a nova compreensão da doutrina da separação dos poderes.
Prima facie, afirma-se que a ‘inviolabilidade’ se assenta no âmbito Constitucional, mas é óbvio que os seus efeitos se manifestam no âmbito processual, mormente o penal, diferentemente da ‘irresponsabilidade’ que tem seus efeitos processados automaticamente ainda no campo material. Com a inviolabilidade se pretende proteger a composição física do parlamento, contra perseguições judiciais por atos estranhos ao exercício das suas funções parlamentares[24]. Como fora visto alhures, teve lugar num contexto em que o judiciário era subordinado ao monarca e buscava-se afirmar a soberania do Parlamento.
Hoje, o contexto é completamente diferente e que impedem uma nova compreensão da separação dos poderes, da legitimidade democrática e do regime das imunidades. Politicamente, o parlamento já não é mais o único órgão com legitimidade democrática, também o é o executivo (nos países republicanos). Nem também o parlamento representa um ‘estamento’ homogêneo da sociedade em que se veja perseguido com um todo pelos outros poderes; esta perseguição ocorre muitas vezes dentro do próprio congresso entre deputados da maioria e da minoria. Institucionalmente, pode-se levantar o fortalecimento de alguns órgãos que não integram a tríade da separação dos poderes, mas que possuem relativa independência de atuação não estando efetivamente subordinada a um dos poderes, que é o caso do Ministério Público, dos Tribunais de Contas e da Polícia Investigativa, pois podem e devem atuar, se necessário, contra quaisquer dos titulares do poderes tradicionais. Há quem defenda, principalmente no caso do Ministério Público, se tratar de um quarto poder. No âmbito jurídico, a separação dos poderes buscava a liberdade do cidadão, em que um poder dispunha de mecanismos jurídicos para frear abusos de outro poder – aqui se insere a ‘inviolabilidade’ – através de imposição de limites. Esta noção radicalmente ligada à doutrina liberal não tem mais cabimento nos dias de hoje em que se exige do Estado cada vez mais prestações positivas para a realização dos direitos e objetivos fundamentais.
Não é tão fácil simplesmente defender a extinção de uma garantia parlamentar, sem comprometer o equilíbrio dos poderes, até porque, como visto, este se torna cada vez mais complexo. Para isso, deve-se partir de uma situação de desequilíbrio, em direção ao restabelecimento deste, mas sem se desvirtuar do fundamento do instituto.
1. Comprometimento da integridade física do parlamento e Perseguições Injustas. Segundo Alexandre de Morais, o objetivo dessa imunidade era garantir aos parlamentares, leia-se Deputados e Senadores, que eles não seriam “afastados, importunados ou mesmo subtraídos de suas funções por processos judiciais arbitrários ou vexatórios, emanados seja de um adversário político, seja de um governo desejoso de desembaraçar-se de um opositor perigoso, devendo as imunidades formais protegê-los contra os processos judiciais, mal fundados, ou intempestivos, que somente seriam inspirados por sentimentos de perseguição política”.[25]
Esse receio de perseguição era claro durante o período da Revolução Francesa, dotado de enorme instabilidade, sendo imprescindível dotar os parlamentares – que se afirmavam como os legitimados pela vontade do povo – de garantias frente aos correntes abusos do monarca. Tem-se o medo do parlamentar – legitimado pela vontade popular – ficar impedido de exercer o seu mister, por ter que se preocupar com o patrocínio de sua defesa perante os tribunais. E se as demandas forem excessivas e desleais, certamente impossibilitarão o regular exercício do mandato. A integridade do parlamento, por certo é um bem que se deve preservar.
Mas nos países democraticamente estáveis, essa garantia se torna praticamente um privilégio parlamentar, pois, ainda que haja algum receio de abuso, estes não são corriqueiros. Entretanto, mesmo não sendo correntes, não podem ser desprezados pelo legislador cauteloso, devendo dotar o parlamento de garantias face a tais abusos. Em contraponto, essas garantias acabam por acobertar uma série de violações aos bens tutelados pelo Estado e abrigando criminosos no poder. Constata-se uma situação contraditória, onde a inviolabilidade é justa para o bom parlamentar que é perseguido injustamente; mas é injusta para o parlamentar criminoso que busca refúgio no estatuto para ficar impune. É impossível saber, prima facie, quando a demanda penal é justa ou injusta, sob pena de se fazer um pré-juízo de absolvição/condenação sumária. É por isso que se estabelecem as garantias.
O ordenamento, em regra, dota certos sujeitos de garantias sempre que há receio de um abuso. É o que ocorre com o direito de demandar, com a irresponsabilidade, com o habeas corpus e etc. Mas, o que tem se constatado, no tocante a inviolabilidade parlamentar é um abuso da utilização deste instituto que gera uma situação generalizada de impunidade. E face a esse abuso, já é possível pensar em ‘garantias contra o abuso das garantias’.
Retomando a proposta inicial, se não houvesse as inviolabilidade, que meios existiriam para evitar os abusos e perseguições? A inviolabilidade é um instituto cujos efeitos se perpassam notadamente no campo processual. Assim, a resposta a essa pergunta deverá envolver também as garantias processuais genéricas. Pois bem, em regra a inviolabilidade não envolve os processos de natureza cível ou administrativa, desse modo, não é a simples existência do instituto que irá por fim nas perseguições e o comprometimento da integridade física do parlamento. Além disso, operam em favor do réu as garantias processuais da presunção de inocência, in dúbio pro reo e a extinção do processo por carência de ação nos causas de não haver ‘justa causa’. Ademais, poucas são as vezes em que o particular poderá acionar penalmente o parlamentar – restrito aos casos de ação penal privada, em que grande parte está coberto pela irresponsabilidade. Nos demais casos, o responsável pela promoção da ação penal é o Ministério Público, que em países como o Brasil já pode ser tido como o ‘quarto poder’, que não está diretamente subordinado ao executivo, legislativo ou judiciário. As investigações são feitas pela polícia, que é subordinada, em geral, ao executivo e as decisões são tomadas pelo judiciário – regido pelo princípio da inércia. Ou seja, o próprio sistema processual penal é dotado de uma distribuição de atribuições, que, em si, já é uma garantia ao parlamentar.
Por isso, principalmente nos países democraticamente estáveis, a extinção da inviolabilidade não afetaria significativamente a atuação parlamentar.
2. Crise do paradigma representativo para responder os problemas da contemporaneidade. Diz-se que na democracia representativa o povo exerce o poder de forma indireta, no quando da eleição dos representantes que irão compor o Parlamento[26]. O governo representativo, diz o ilustre JORGE MIRANDA, pressupõe “uma dissociação entre a titularidade e o exercício do poder – aquela radicada no povo, na nação (no sentido revolucionário) ou na colectividade, e este conferido a governantes eleitos ou considerados representativos da colectividade (de toda a colectividade, e não de estratos ou grupos como no Estado estamental). E é a forma de governo nova em confronto com a monarquia, com a república aristocrática e com a democracia directa, em que inexiste tal dissociação.”[27]
A democracia representativa, contudo, apresenta-se insuficiente para conceber a soberania popular[28]. E a autora aponta das razões: A primeira tem a ver com o princípio da maioria, do qual se extrai que aqueles eleitos não representam a totalidade dos eleitores. A segunda, com a inconveniência do distanciamento dos eleitores e dos ‘exercentes’, que mais atuam nos interesses de grupos específicos, com vistas a obter vantagens pessoais, não havendo mecanismos de controle da atividade dos mandatários.
Isso traz implicações no regime das imunidades, pois os parlamentares foram eleitos, em nome do povo, para defenderem os interesses de todos e, por causa disso, se lhes confere as imunidades. Quando se reconhece que o parlamento não é o único legitimado diretamente pelo povo para atuar em seu nome (presidente também é popularmente eleito), fica mais difícil admitir um regime de imunidades face outro poder, quando este último também tem legitimação democrática. No mínimo exigiria uma situação de isonomia. Mas o que conduz à uma ‘crise’ do paradigma democrático-representativo é o distanciamento eleitores e eleitos. Tem tomado espaço, mais no âmbito da política e da sociologia, a representatividade dos parlamentares, os quais mais lá estão para satisfazer interesses privados que o popular/nação. Certo é que não existem mecanismos de exigir que o parlamentar atue conforme a vontade dos eleitos. Em se admitindo isso (que merece cautelas, mas não é desprezível), a atribuição de amplas garantias de improcessabilidade àquele que exerce o múnus público, mas que não está obrigado a agir sempre conforme a vontade geral, poderia gerar situações de abusos ainda maiores do que aquelas que se quer evitar. Portanto, não se pode, simplesmente, invocar o princípio representativo para fundar as inviolabilidades.
3. Justiça tardia não é justiça. Um dos argumentos para a manutenção da inviolabilidade é a preservação da composição do parlamento durante a legislatura, mas, logo após a cessão desta, o parlamentar seria processado normalmente como qualquer cidadão. Não é de se rejeitar tal proposição. Afinal, preservaria a composição parlamentar e contemplava o objetivo fundamental de aplicação da justiça.
Entretanto, como inexiste dispositivo que vede a candidatura à reeleição de parlamentar, este, já gozando do prestígio que já tem, normalmente consegue se reeleger, havendo uma sucessão de mandados justapostos e que acabam por paralisar o andamento do processo por décadas. Em outros casos, ocorre uma ‘lei da camaradagem’ onde o Parlamento protelava a votação do pedido de levantamento da inviolabilidade e não havia nenhum dispositivo coativo que impusesse tal votação. Daí duas conseqüências se extrai. Uma, o período que o processo fica paralisado acaba por gerar uma sensação de impunidade – o que não deixa de ser uma ‘impunidade temporária’. Duas, quando o processo volta a correr muito das provas que seriam usadas para a apuração do fato restam inutilizadas, desnaturadas ou inexistentes, e os parlamentares acabam se beneficiando da absolvição por ausência de provas. Isso gera uma situação incompatível com o todo o ordenamento jurídico e que deve ser evitada. É por isso que não são poucos os autores a afirmar que a semelhança entre ‘imunidade’ e ‘impunidade’ não é meramente vocabular. Em fato, o instituto da inviolabilidade tem servido para acobertar muitas condutas criminosas e o estudante do direito não pode se conservar simplesmente numa atitude legalista-positivista, mas partir de uma compreensão tridimensional do direito.[29]
4. Novos mecanismos de proteção. Em que pese parte deste tópico já ter sido exposto acima, não se pode olvidar de alguns mecanismos de proteção processual que se encontram disponíveis a quaisquer cidadãos e que também operam a favor dos deputados. Cite-se o ‘mandado de segurança’[30], ‘habeas corpus’,’habeas data’, ‘direito de petição’, foro por prerrogativa de função, entre outros.

- Haverá necessidade de inviolabilidade parlamentar?
Ocorre que ao restringir a imunidade parlamentar a ponto de eliminar a improcessabilidade, o Constituinte derivado transgrediu a independência e harmonia entre os Poderes da União (Legislativo, o Executivo e o Judiciário), tendo em vista que a alteração imposta extinguiu uma prerrogativa conferida pelo Constituinte originário aos parlamentares visando "a defesa do regime democrático, dos direitos fundamentais e da própria Separação dos Poderes".
A ruptura é tão profunda, tratando-se de garantia protetora do Poder Legislativo, que justificaria, para repelí-la, invocar o princípio tutelar da harmonia e independência dos Poderes (Constituição Federal, art. 2º) sob o fundamento idôneo de lesão a uma limitação material, dirigida ao poder de reforma, que veda proposta de emenda tendente a aboli-la (Constituição Federal, art. 60, §4º, III). [31]
[1] R. Bin, Stato di diritto, Bologna, 2004, pag. 16 ss. apud TOMMASO F. GIUPPONI. Le immunità costituzionali. Perugia, 2006.Disponível em www.forumcostituzionale.it, Acesso em: 27 de novembro de 2008.
[2] TOMMASO F. GIUPPONI. Le immunità costituzionali. Perugia, 2006. Disponível em www.forumcostituzionale.it, Acesso em: 27 de novembro de 2008.
[3] R. Carré de Malberg, La loi, expression de la volonté générale. Étude sur le concept de loi dans la Constitution de 1875, Parigi, 1931. TOMMASO F. GIUPPONI. Le immunità costituzionali. Perugia, 2006. Disponível em www.forumcostituzionale.it, Acesso em: 27 de novembro de 2008.
[4] TOMMASO F. GIUPPONI. Le immunità costituzionali. Perugia, 2006. Disponível em www.forumcostituzionale.it, Acesso em: 27 de novembro de 2008.
[5] TOMMASO F. GIUPPONI. Le immunità costituzionali. Perugia, 2006. Disponível em www.forumcostituzionale.it, Acesso em: 27 de novembro de 2008.
[6] Também no mesmo sentido C. SCHMITT, Legalità e legittimità, in Idem, Le categorie del “politico”, Bologna, 1972, pag. 212
[7] S. FOIS, Legalità (principio di), in Enc. Dir., XXIII, Milano, 1973, pag. 662 apud TOMMASO F. GIUPPONI. Le immunità costituzionali. Perugia, 2006. Disponível em www.forumcostituzionale.it, Acesso em: 27 de novembro de 2008.
[8] ELOY GARCÍA LOPEZ, Inmunidad parlamentaria y estado d partidos. Madrid: Tecnos, 1989. p.94-96.
[9] J.J. GOMES CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ed. 3.reimp. Coimbra: Almedina, 2003. p.75.
[10] FIORAVANTI, Potere Costituente e Diritto Pubblico”, in Stato e Costituzione, g. Giappichelli Editore, Torino, 1993, p.233. apub [10] J.J. GOMES CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ed. 3.reimp. Coimbra: Almedina, 2003. p.75.
[11] BORIS MIRKINE-GUETZÉVICH, De la séparation des pouvoirs - apud ELOY GARCÍA LOPEZ, Inmunidad parlamentaria y estado d partidos. Madrid: Tecnos, 1989. p.98.
[12] J.J. GOMES CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ed. 3.reimp. Coimbra: Almedina, 2003. p.76.
[13] ELOY GARCÍA LOPEZ, Inmunidad parlamentaria y estado d partidos. Madrid: Tecnos, 1989. p.101-102.
[14] NUNO PIÇARRA. ibidem. p. 26.
[15] ELOY GARCÍA LOPEZ, Inmunidad parlamentaria y estado d partidos. Madrid: Tecnos, 1989. p.103.
[16] Eloy Garcia Lopez cita vários pensadores - TRIEPEL, SCHMITT, KELSEN, SMEND, HELLER, LEIBHOLZ, DUVERGER;
[17] VERA GRILLO. Reflexões sobre a teoria da separação dos poderes e a hegemonia do poder executivo. Revista BuscaLegis. n.º 24. Setembro de 1992 - p. 25-35. ccj.ufsc.br
[18] ELOY GARCÍA LOPEZ, Inmunidad parlamentaria y estado d partidos. Madrid: Tecnos, 1989.
[19] A teoria da constituição mista estabelece que as três formas de governo relativas às três classes que representam - monarquia e realeza, aristocracia e nobreza, democracia e povo - devem se juntar de maneira a agregar os fatores positivos de cada uma, ou seja, a capacidade de ação de um executivo forte, a função mediadora de uma nobreza e a legitimidade popular. A estrutura política se configura numa balança de poder que reconhece a importância do conflito social e tenta dirimi-lo nas instituições estatais. Se a sociedade é fragmentada em diversas classes, não há como garantir a estabilidade política sem que elas participem do governo de maneira igual. (In POLÍBIOS, História. Brasília: UNB, 1985, livro VI, p. 332 et. seq.)
[20] NUNO PIÇARRA. ibidem. p. 24.
[21] MARIA BENEDITA URBANO. idem e ELOY GARCÍA LOPES.idem
[22] Raul Machado Horta prefere denominar de controle prévio ou posterior, classificação que teria sido contemplada pelo autor deste texto a princípio. Mas optou-se por uma classificação de realçasse a mudança da concepção do instituto. (HORTA, Direito constitucional. 4. ed. rev. e atual.. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 56.)
[23] Fruto da indignação que tomou conta de vários segmentos da sociedade, a Emenda Constitucional a Constituição Brasileira de n.º 35, de 20 de dezembro de 2001 foi aprovada, na Câmara dos Deputados, por 441 (quatrocentos e quarenta e um) votos. Estavam presentes na sessão 444 (quatrocentos e quarenta e quatro) Deputados e apenas um votou contra e dois se abstiveram de participar da votação. No Senado Federal a votação foi unânime. Dos 67 (sessenta e sete) Senadores que compareceram à sessão, todos foram favoráveis à Emenda. O mostra que o próprio parlamento assume a crise que enfrentava a inviolabilidade (imunidade formal). Diz o texto da respectiva Emenda:. 3º Recebida a denúncia contra Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação. 4º O pedido de sustação será apreciado pela Casa respectiva no prazo improrrogável de quarenta e cinco dias do seu recebimento pela Mesa Diretora. 5º A sustação do processo suspende a prescrição, enquanto durar o mandato.
[24] MARIA BENEDITA MALAQUIAS URBANO. Representação Política e Parlamento. Contributo para uma Teoria politico- Constitucional dos Principais Mecanismos de Protecção do Mandato Parlamentar.Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra, 2005, Nov.30. pag. 531.
[25] ALEXANDRE MORAES, Direito constitucional. 11. ed.. São Paulo: Atlas, 2002. p. 403.
[26] LUANA XAVIER PINTO COELHO, Garantias procedimentais do princípio democrático. Revista Jus Vigilantibus. Acesso em: jusvi.com/artigos/36822
[27] MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 46.
[28] LUANA XAVIER PINTO COELHO, Garantias procedimentais do princípio democrático. Revista Jus Vigilantibus. Acesso em: jusvi.com/artigos/36822
[29] Cita-se aqui a conhecida posição do professor MIGUEL REALE. O direito como fato-valor-norma.
[30] Admitido na legislação brasileira – para coibir ilegalidade ou abuso de poder de autoridade, contra direito líquido e certo.
[31] ALEXANDRE MORAES, Direito constitucional. 11. ed.. São Paulo: Atlas, 2002. p. 371.

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