segunda-feira, 13 de abril de 2009

A problemática dos Assentos e a Separação dos Poderes

Trecho de Comentário ao Acórdão nº 743/96 TC

A problemática dos assentos tem de ser analisada inserida dentro da problemática geral da divisão de funções e dos órgãos do poder. Isso porque a natureza dos assentos encontra similaridades com a natureza da lei, que é ato típico do Poder Legislativo. Entretanto, hoje, já não se fala mais de uma separação rígida de poderes e funções do Estado, admitindo algumas flexibilizações notáveis, em que um poder realiza ato típico de outro, sem que isso interfira na própria essência desse princípio.
Atualmente, alerta Tommaso Giupponi, a constitucionalização positiva dos princípios fundamentais (como da igualdade, da separação dos poderes e a inviolabilidade dos direitos fundamentais), agora se põe com força o problema de criar uma base para a renovada legitimação racional do exercício do poder, dentro de uma sociedade complexa e articulada, inspirada no cânone da democracia pluralista e baseada em princípios e valores, considerados formalmente e materialmente mais elevados do que na legislação ordinária[1]. É por isso que se faz imprescindível pensar em um sistema ainda mais complexo e racionalizado de ‘freios e contrapesos’, superando a superioridade da legitimidade e legalidade típica do Estado de direito liberal, inspirado no cânone da representação política.[2]

3.1 A Separação de funções e separação orgânica do poder
Quando se fala de separação de poderes tem-se a tendência de imediatamente vincular à separação de funções do Estado. Entretanto temos que ter por bem distintas tais concepções. Em primeiro lugar, Montesquieu percebeu que a liberdade só se encontra nos governos moderados, por que todo homem que possui poder é levado a abusar dele, indo até onde encontra limites. O poder deve limitar o poder. Para ele, uma Constituição tem que ser tal que ninguém seja obrigado a fazer as coisas a que a lei não obriga e a não fazer aquelas que a lei permite.[3] Daí é possível se extrair a idéia de uma distribuição de competência e que tenha assento na Constituição, mas ainda não é possível associá-la imediatamente com a separação funcional dos poderes.
Entretanto, no capítulo VI, intitulado Da Constituição da Inglaterra, Montesquieu afirma que em cada Estado existem três tipos de poderes: o de fazer as leis, o de executar resoluções públicas e o de julgar crimes ou as querelas entre particulares. Segundo ele, se estes três poderes estivessem sob a mão do mesmo homem, ou corpo colegial, tudo estaria perdido.[4] Entretanto, tal concepção foi desenvolvida em busca de um Estado que tivesse como objetivo principal a garantia da liberdade política. Hoje, como se sabe, o Estado agregou outros objetivos, tais como a eficiência do aparelho estatal, a segurança social, a formação educacional, a prestação de serviços de saúde, além de com isso garantir as liberdades políticas.
Assim, o que se aproveitou foi a necessidade de moderação do poder, com a antiga doutrina da separação de funções do Estado. De fato, a separação dos poderes de tal modo possibilita maior especialização. Como diz Zippelius, “a doutrina da divisão dos poderes distingue os mais importantes âmbitos funcionais do Estado e as competências com eles relacionadas, exigindo a criação de órgãos próprios para cada um destes âmbitos funcionais.”[5] É o que ele chama de «distribuição de funções organicamente adequada», porque a própria estrutura dos órgãos vai refletir as necessidades impostas pela função que o mesmo exerce. Diz ele que “o parlamento é mais apropriado, p.ex., para o exercício discricionário da regulação jurídico-política do que um tribunal.” Porque tem à sua disposição, regra geral, bases de informação mais amplas e melhores do que um tribunal; está preparado para negociar compromissos sociais; e toma suas decisões em confronto necessário com a opinião pública e, deste modo, está submetido por retroacção a controlos democráticos, tal como são exigidos para processos de orientação política, inclusivamente para a selecção e limitação de objectivos legislativos de natureza jurídico-política.”[6]

3.2 A Separação dos Poderes como projeto intencional e cultural
Reinhold Zippelius diz que “um dos temas mais importantes da teoria do Estado, trata do modo como se pode evitar, numa comunidade organizada e dotada de uma força integradora suficiente, uma perigosa concentração do poder, bem como um excesso de dirigismo centralizado.”[7] É por isso que o princípio da separação de poderes, como princípio organizatório estrutural, acabou por ser uma das «grandes constantes» do Estado Constitucional, verdadeira ratio essendi da Constituição.[8]
A idéia de uma separação de poder deve refletir um projeto intencional e cultural de uma sociedade. Nela devem estar consagrados os valores e as intenções que se deseja proteger, bem como a forma que deverá surgir esta proteção. O próprio Montesquieu reconheceu que cada Estado possui um objetivo em particular. “O crescimento era o de Roma, (…) a religião o das leis judaicas, o comércio do de Marselha, a tranquilidade pública o das leis da China (...)”[9] Pois bem, a teoria concebida sob sua autoria baseava-se em um Estado que tinha o objetivo a «liberdade pública», por isso não pode ser vista como algo natural e inerente à todas as constituições. É o que reconheceu Hesse ao afirmar que a “norma constitucional somente logra em atuar se procura construir o futuro com base na natureza singular do presente”, não ignorando as leis culturais, sociais, políticas e econômicas, que são o germe da sua força vital.[10]
Reconhece-se a importância da separação dos poderes e dos check and balances para a manutenção do equilíbrio do poder; mas a forma que esta separação assumirá deverá ser delineada intencionalmente na Constituição, tomando-se por base um projeto de intencionalidade cultural. Poderá atribuir uma proeminência a um ou outro órgão, ou não atribuir proeminência nenhuma.

3.3 Essência e Intangibilidade da Separação dos Poderes
Foi visto que a separação dos poderes expressa um projeto de intencionalidade cultural de certa sociedade e também que não se trata de um princípio perfeitamente definido e invariável. Por certo, admite certa flexibilidade. A questão que se põe é de saber se o instituto dos assentos afetaria o conteúdo essencial desse princípio.
O que seria esse conteúdo essencial é empreitada que não será traçada nesse momento, mas somente, um levantamento doutrinário a respeito. Canotilho, ao tratar dos critérios de ordenação de funções, nos apresenta o modelo do núcleo essencial, pelo qual infere-se que a interdependência (prevista na CRP) torna aceitável a interpenetração de funções, mas com um limite básico e incontornável: “o núcleo essencial de cada uma dessas funções remete para um campo de tarefas típico de cada um dos órgãos de soberania, tarefas essas que não poderão deslocar-se para outros órgãos sob pena de a violação do núcleo essencial ser sintoma da violação da separação.”[11] Pela perspectiva da «teoria formal-material» de Estado, um poder conduzirá a uma função, e uma função reconduzirá a um poder. Entretanto, tal assertiva, segundo Canotilho, não é um “esquema abstractamente teorético”, devendo-se sempre ter em conta o condicionamento jurídico-constitucional e a concreta delimitação de competências na Constituição, a qual servirá de base para ordenar as funções do Estado.[12]
A separação dos poderes é um modelo concebido através de uma ordem constitucional concreta. No caso da experiência portuguesa, a CRP adotou um «esquema organizatório funcionalmente adequado», o qual pressupõe que os órgãos de soberania são constitucionalmente idôneos e adequados para o exercício das funções. Admitido isso, Canotilho afirma que “é legítimo deduzir que os órgãos especialmente qualificados para o exercício de certas funções não podem praticar actos que materialmente se aproximam ou são mesmo característicos de outras funções e da competência de outros órgãos.”[13] O referido autor, ao cogitar o conteúdo essencial da separação, afirma que a nenhum órgão podem ser atribuídas funções das quais resulte o esvaziamento das funções materiais especialmente atribuídas a outro. Pressupõe, primeiramente, a correspondência entre órgão e função e só admite exceções quando não for sacrificado o seu conteúdo essencial, porém ainda permanece o problema de saber onde ele começa e termina.[14]
A esse respeito, a jurisprudência constitucional portuguesa já se manifestou pra dizer que haverá violação ao conteúdo essencial «sempre que um órgão de soberania se atribua, fora dos casos em que a Constituição expressamente o permite ou impõe, competência para o exercício de funções que essencialmente são conferidas a outro e diferente órgão».[15]
Com base na referida jurisprudência, cumpre questionar se a Constituição portuguesa permite ou não o instituto dos assentos da forma como prevê o Art. 2°, do Código Civil. Isto será analisado mais detidamente adiante.

3.4 Indelegabilidade
Outra questão que pode se colocar é se, dentro da estrutura da separação orgânica funcionalmente adequada acolhida pela CRP, o órgão do poder legislativo poderia delegar funções que lhe são próprias aos outros órgãos da estrutura dos poderes. Pois, de fato, fala-se de uma lei, emitida por órgão constitucionalmente legitimado, mas que atribui a outro órgão de soberania a possibilidade de editar atos de natureza semelhante.
Os órgãos constitucionais de soberania (no caso português: Legislativo, Executivo, Governo e Judiciário) têm sua competência imediatamente definidos pela Constituição, estabelecendo relações de interdependência e controle. Desse modo, afigura-se incoerente a idéia de um órgão poder abdicar, renunciar ou transferir sua competência a outro, que não esteja prevista na própria Constituição. Então, não é possível compreender o argumento de que possa ter havido aí uma delegação de competência.

3.5 Os Assentos. Interferência na competência do Legislativo
Dentro desse subtema de discussão, cabe refletir se, em que pese a semelhança entre assentos e a lei, aqueles conflituam com a tipicidade dos atos legislativos. Barbosa de Melo, citado no Acórdão em questão, confere aos assentos natureza jurisprudencial. Diz que os conceitos das funções materiais do Estado são «conceitos tipológicos» (tipos) e não «conceitos definitórios» (definições classificatórias). Para ele «lei» e os «assentos» distinguem-se: (1) quanto à liberdade constitutiva, pois a legislação está, em princípio, na total dependência de um juízo de oportunidade atribuído ao titular da respectiva competência, enquanto a emissão dos assentos é juridicamente obrigatória desde que se verifiquem objectivamente os pressupostos legalmente estabelecidos; (2) quanto a inovação, a norma legislada é tipicamente uma prescrição inicial, emergente, de ruptura, um novum na ordem jurídica positiva, ao passo que o assento há-de ser uma norma intralegal, correspondendo a uma das variantes do sentido da respectiva lei; (3) quanto a omnivalência ou plurifuncionalidade, ambas as figuras podem incidir "sobre todas as matérias", só que os assentos, movendo-se no espaço intralegal, subordinados a lei; (4) os assentos carecem da característica da autoreversibilidade que faz parte do tipo da actividade legislativa, aspirando, como decisões jurisprudenciais que são, à definitividade e à irretractibilidade.[16]
Segundo o autor, as características dos assentos “não apontam, no seu conjunto, no sentido da sua inclusão no domínio constitucional da função legislativa", pois que, verdadeiramente, "se limitam sem grande novidade, a escolher uma de várias interpretações judiciais da lei possíveis e praticadas já, e a impô-la como interpretação autêntica da mesma lei.”[17]
Uma outra visão trazida a baila no acórdão é a de Marcello Caetano, que, “existindo uma hierarquia de tribunais, admite-se que a decisão do superior possa ser tornada obrigatória para os que dele dependem, exactamente como as instruções na hierarquia administrativa”. Entretanto, para ele, é indispensável que se limite ao âmbito dos tribunais hierarquicamente inferiores; fora disso, o assentos teriam nitidamente natureza legislativa.
Como parte da argumentação, o Tribunal levantou a questão de que “ os tribunais estão limitados à função judicial, isto é, à actividade de julgamento de casos concretos segundo as formas processuais tendentes à aplicação do direito constituído”, e que “a função de fazer leis e interpretá-las pertence à Assembleia Nacional e ao Governo” e, portanto, a atribuição cometida por lei ordinária a um tribunal de função legislativa seria inconstitucional.
Em primeiro, não é verdade que a função judicial se restrinja aos casos concretos. O próprio julgamento da inconstitucionalidade do preceito normativo é um exemplo de controle abstrato e que tem eficácia geral e vinculante (art. 281, CRP). É de se questionar se não seria aqui também o caso de interferir na competência típica do legislativo. Tem-se por certo que há uma semelhança quanto ao efeito de uma revogação e que, pela sua generalidade, aproxima-se dos atos normativos. Mas, antes de tudo há uma previsão constitucional, que é a única capaz de mitigar os rigores de uma separação orgânica dos poderes funcionalmente adequada, e não uma lei ordinária.
Também é menos verdade que a função de interpretar leis seja exclusiva do legislativo e do governo. Já há tempos tem-se por superada a idéia de um juiz que seja la bouche des lois. Isto porque as leis não são tão claras e tão detalhadas face a complexa dinamicidade de possibilidades que se enquadram no texto legal. Exige, portanto, uma atividade interpretativa do juiz, se não mesmo, como diz Kelsen, uma atividade criativa, mas subordinada às disposições constitucionais e legais.
Do exposto, conclui-se que os assentos acabam por não interferir na competência legislativa, desde que estejam restritos ao âmbito dos tribunais hierarquicamente inferiores ao Supremo e tenham como parâmetro a aplicação da lei.

3.5 Violação da Independência Decisória
Se por um lado admite-se alhures que não haveria uma interferência na tipicidade dos atos legislativos, por outro levanta-se a questão de se, admitindo os assentos no âmbito do judiciário, não estaria violando a independência decisória dos tribunais.
Levantou a Conselheira Maria Fernanda Palma que a eficácia interna dos assentos “viola o princípio da independência decisória dos juízes consagrado no artigo 206º da Constituição”.[18] Tal questão deve ser encarada em confronto com o atual artigo 210º, nº. 1.[19]
O Tribunal Constitucional entendeu que “este afloramento constitucional do valor da uniformização jurisprudencial há-de ser entendido em termos de, numa perspectiva global do funcionamento do sistema judiciário, justificar a subordinação de todos os tribunais judiciais à «jurisprudência qualificada» do Supremo Tribunal de Justiça sem que, de tal subordinação, resulte comprometida a sua independência decisória.”
A questão tem que ser conduzida com cautela. E assim, propõe-se inicialmente a seguinte reflexão: ou entende-se que a independência decisória dos tribunais refere-se a este como sendo uma estrutura complexa que compreende globalmente toda a hierarquia dos tribunais, pois, afinal, se sobreporá o entendimento daquele que estiver no topo da pirâmide; ou entende-se, por outro lado, que a independência decisória é garantida a cada juízo e este não poderá ser vinculado por um entendimento de um tribunal revisor, afinal, como o nome já diz, seria a oportunidade daquele que se considera prejudicado ter seu argumento reanalisado.
Como já foi considerado no início, a ausência de uma uniformização jurisprudencial, conferindo aos juízes alto grau de independência, acabou por se manifestar danosa à atividade judicial, gerando uma insegurança incompatível com um dos objetivos primordiais do direito. Por isso, é preferível que se mantenha certo grau de uniformidade jurisprudencial diante daqueles casos em que a lei abre margem para diversas interpretações e que tenham sido reiterados os posicionamentos a respeito. Restaria ainda assim independência decisória dos tribunais inferiores quanto às matérias não assentadas, a compreensão dele princípio deve tomar em conta tribunais como sendo um complexo hierarquicamente disposto.

3.6 Estabilização e imobilidade
Outro ponto que trazido pelo Tribunal Constitucional refere-se justamente a necessidade de evitar os dois perigos: o da imobilização e o da instabilidade.
Entendeu a corte constitucional que a circunstância de os acórdãos tirados pelo tribunal pleno poderem ser alterados pelo tribunal deles emitente, não retirando a necessária estabilidade à uniformidade jurisprudencial que se intentava alcançar, afastava o perigo da sua estagnação e imutabilidade. Segundo Alberto dos Reis, “jurisprudência uniforme não quer dizer jurisprudência imutável", já que "com a formulação de assentos investidos de força obrigatória a jurisprudência não se asfixia nem se imobiliza (...) porque os assentos podem ser revistos e alterados, quando se reconheça que deixaram de corresponder às necessidades e interesses da ordem jurídica”.[20]
De fato, a estabilidade que o direito preconiza é uma «uniformidade progressiva da jurisprudência», atendo ao presente, mas consciente de eventual mudanças futuras.

4. A constitucionalidade/inconstitucionalidade dos Assentos conforme a CRP 1976.
Por fim, cabe agora tecer alguma palavras conclusivas sobre a (in)constitucionalidade do instituto dos assentos face a Constituição da República Portuguesa de 1976. Cumpre ter em mente que esta Carta traz consigo um projeto intencional jurídico-cultural para a organização do Estado português. Como já havia preconizado Hesse, “a força vital e a eficácia da Constituição assentam-se na sua vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenação objetiva.”[21]
A CRP, reconhecendo a necessidade de se estabelecer um exercício moderado do poder, trouxe consigo uma «separação orgânica dos poderes funcionalmente adequada», donde a um órgão foi atribuída uma função típica. De forma simples: ao Legislativo cabe a função de produzir leis, ao Judiciário, a função de julgar conflitos. Não se diga que ela seja inflexível, uma vez que a própria Constituição excepciona este princípio.
Entretanto, a questão posta é se uma norma infraconstitucional, ao flexibilizar a separação dos poderes, estaria satisfazendo algum outro princípio constitucional que justificasse a restrição daquele? Veja-se.
A Separação e Interdependência de poderes encontra-se consagrada na Constituição Portuguesa, Art. 2º [22], bem como Art.111[23]. Este último dispõe expressamente sobre a vedação de delegação de poderes a outro órgão quando não esteja previsto expressamente na Constituição.
A Constituição não dispõe claramente sobre a impossibilidade de um órgão jurisdicional emitir assentos. Tanto é que alguns levantaram a possibilidade de se invocar o art. 122, nº 2, alínea g) da CRP.[24] Entendeu o Tribunal Constitucional: “o texto constitucional saído da primeira revisão (como aliás acontece com a actual versão da Constituição) não dispunha de qualquer norma que directa e expressamente consagrasse a existência constitucional dos assentos.”
Tal artigo se contrapõe diretamente ao previsto no Art. 115º (atual art. 112º), nº 5 da Constituição, pelo qual “Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.”
Para Gomes Canotilho e Vital Moreira, citados no acórdão, a norma do Art. 112º, nº 5 possui dois sentidos primordiais: “(a) a aprovação do «princípio da tipicidade dos actos legislativos» e consequente proibição de actos legislativos apócrifos ou concorrenciais, com a mesma força e valor de lei; (b) a ideia de que as leis não podem autorizar que a sua própria interpretação, integração, modificação, suspensão ou revogação seja afectada por outro acto que não seja uma outra lei.”
É preciso, portanto, uma leitura minuciosa dos dois artigos em conjunto, sem deixar de ter por consideração as premissas sobre a «separação orgânica funcionalmente adequada». O artigo 119º, nº.1, g) (antigo 122º) da Constituição, ao primeiro olhar, não só admite a existência de decisões de outros tribunais (que não o TC) com força obrigatória geral, como também transfere à lei a possibilidade de conferir esta qualidade. Em contraposição, o art. 112º, nº.5 (antigo 115º) reza que a lei não pode criar outra categoria de «actos legislativos», e nem atribuir «eficácia externa» a atos de outra natureza, para interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer de seus preceitos.
Já se discutiu alhures que a concepção de ato legislativo não se confunde com ato normativo. O ato legislativo é um comando emitido pelo poder legislativo que não obrigatoriamente se expressará através de uma norma. Portanto, o dispositivo afirma que o parlamento não poderá se esquivar do procedimento legislativo, criando outra modalidade de ato legislativo.
Ademais, cumpre saber o que seria tal eficácia externa a que se refere o art. 112º, nº. 5. Confunde-se-lha com a «força geral e obrigatória»? É possível haver uma interpretação sistemática dos dispositivos? O art. 112º, nº 5, CRP impede que o art. 2º, do Código Civil, confira a ato de natureza que não seja legislativa (no caso a doutrina fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça) uma eficácia externa. Por externa entende-se aquilo que transborda a esfera de competência de um órgão, o que não obrigatoriamente possa lhe suprimir totalmente o seu caráter de generalidade. Nem mesmo as leis possuem em todos os casos uma generalidade irrestrita: por vezes aplicam-se a todos, outras a determinados grupos, outras impõe decisões concretas e individuais e etc., assim também essa generalidade dos assentos não precisa ser irrestrita.
Acredita-se, portanto, que a decisão mais acertada seria a de compatibilizar os dois artigos. O art. 119º, CRP trata de decisão de tribunal e não de doutrina (Art.2º. CC), de modo que a primeira prevaleceria. Aquele artigo da Constituição fala de força obrigatória geral, porém este sentido seria restringido pelo art. 112º (também da Constituição) o qual veda a eficácia externa. Assim, possível admitir que essa generalidade se estenderia para dentro somente da estrutura hierárquica dos tribunais, mas não para os particulares e administração pública.
Compreende-se, pois, que a Constituição excepciona a si própria quanto à separação de poderes, possibilitando conferir às decisões dos tribunais que a lei determinar força obrigatória geral, mas restrita ao âmbito da hierarquia dos tribunais.[25]
[1] GIUPPONI, TOMMASO. Le immunità costituzionali. Perugia, 2006. Disponível www.forumcostituzionale.it, Acesso: 27 de novembro de 2008.
[2] Também no mesmo sentido C. SCHMITT, Legalità e legittimità, in Idem, Le categorie del “politico”, Bologna, 1972, pag. 212
[3]MONTESQUIEU, Charles. L'Eprit des Lois. Livro XI, Capítulo IV.
[4] MONTESQUIEU, Ob. Cit. . Livro XI, Capítulo V.
[5] ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3.ed. Trad. Karin Praefke-aires Coutinho. Lisboa: Fundação Colouste Gulbenkian, 1997. p. 400
[6] ibidem, 1997. p. 411
[7] ibidem, 1997. p. 400
[8] CANOTILHO, J.J. ob. cit. 2003. p. 555, Citando Kägi.
[9] MONTESQUIEU, Ob. Cit. . Livro XI, Capítulo V.
[10]HESSE, Konrad. A Força Nomativa da Constituição. Trad. Gilmar Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Frabris, 1991. p. 18.
[11]CANOTILHO, ob. cit., 2003. p. 551.
[12]ibidem, 2003. p. 553.
[13]ibidem, 2003. p. 558.
[14]CANOTILHO, ob. cit. 2003. p. 559.
[15]Cfr. Parecer nº 16/79, CC, in Pareceres, vol. VIII, pp. 212 e ss (rel. Figueiredo Dias)
[16] Barbosa de Melo.Sobre o problema da competência para assentar, Coimbra, 1988 citado no Acórdão 810/93 e 743/96
[17] ibidem., pp. 49
[18]Hoje o Art. 203, CRP. Independência: Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.
[19] Art. 210º. nº 1. O Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional.
[20] A função do Supremo Tribunal de Justiça, Studi in onore de Redenti, vol. 1º, pp. 401 e 402 e Anotado, cit., p. 240 apud Acórdão TC nº 810/93
[21]HESSE, ob. cit., 1991. p. 18.
[22] Art. 2º. Estado de direito democrático. República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.
[23] CRP, Art. 111. Separação e Interdenpendência. 1. Os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição. 2. Nenhum órgão de soberania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei.
[24]“Art.119º, nº 1. São publicados no jornal oficial, Diário da República: g) As decisões do Tribunal Constitucional, bem como as dos outros tribunais a que a lei confira força obrigatória geral;”
[25] Problemática semelhante é enfrentada no Brasil, através da Súmula vinculante. Previsão legal: A EC n. 45/04, prevê, em seu art. 103-A, caput, a possibilidade de uma súmula ter eficácia vinculante sobre decisões futuras, dispondo que: "o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei". Com isso, uma súmula outrora meramente consultiva, pode passar a ter verdadeiro efeito vinculante, e não mais facultativo, não podendo ser contrariada. Busca-se assegurar o princípio da igualdade, evitando que uma mesma norma seja interpretada de formas distintas para situações fáticas idênticas, criando distorções inaceitáveis, bem como desafogar o STF do atoleiro de processos em que se encontra, gerado pela repetição exaustiva de casos cujo desfecho decisório já se conhece. Contra o tema, argumenta-se com a violação ao princípio da livre convicção e independência do juiz. (CAPEZ, Fernando. Súmula vinculante . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 911, 31 dez. 2005. Disponível em: . Acesso em: 08 abr. 2009.)

Nenhum comentário: