segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Prisão do Depositário Infiel

É dever do depositário zelar pelos bens sob sua guarda e responsabilidade, devendo comunicar ao juízo as hipóteses de perecimento ou impossibilidade de entrega do bem, em virtude de fortuito ou força maior. A redação do art.666, §3º, CPC, prevê que a prisão de depositário judicial infiel será decretada no próprio processo principal, não precisando de uma ação de depósito específica ou de processo autônomo.
Como se sabe, a penhora tem como uns dos efeitos a «garantia do juízo» e a «individualização dos bens que suportarão os meios executivos». Pela primeira, dá-se segurança ao processo de que há bens suficientes para assegurar a realização do direito do exequendo. Em segundo, a penhora individualizar os bens sobre os quais irão incidir os atos executivos, pois a execução tem a função de expropriar bens do executado para satisfazer o crédito do exequente.
Antes da publicação deste manual sustentávamos o entendimento de que o dispositivo da prisão civil era um meio coercitivo fundamental para garantir a eficiência de todo o processo executivo. Também, numa orientação prática, percebemos a utilidade da prisão civil como último reduto coercitivo para o devedor pagar o débito. Muitas vezes, a experiência mostrou isso, o executado se esquivava durante todo o processo de pagar o débito e somente pagava quando se apresentava o mandado de prisão civil.
O STF havia, inclusive, sumulado (Sum. 619) que a prisão do depositário fiel poderia ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independente da propositura da ação de depósito. Entretanto, o próprio STF cancelou esta súmula (Res nº 349.703 e nº 466.343, e HCs nº 87.585 e nº 92.566), entendendo ser inadmissível a prisão do depositário por infidelidade, qualquer que seja a modalidade de depósito. O plenário firmou a orientação de que só é possível a prisão civil do «responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia» (inciso LXVII do art. 5º da CF/88). A mudança de tal entendimento deveu-se à interpretação do Pacto de San José da Costa Rica, o qual foi ratificado pelo Brasil pelo Decreto 678/92, para valer somente como norma interna. Entretanto, após a Emenda à Constituição Federal nº 45/2005, o § 3º do art. 5º passou a prever que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
O pacto não foi aprovado, conforme o art. 5º, § 3º. Entretanto, conforme o art. 5º, § 2º, entende-se que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Desta monta, o STF entendeu que o Pacto, embora não tenha natureza de emenda constitucional, posiciona-se, em decorrência deste dispositivo, em posição supra legal. Desta forma, a lei ordinária tem dever de obediência ao Pacto de San José da Costa Rica, o qual proíbe a prisão civil por dívidas .
A essência desta discussão é interpretar corretamente o art. 5º, § 2º, da CF. Isto porque a própria Constituição Federal excepciona a regra de que não haverá prisão por dívidas, ao prescrever: art. 5º, LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. Então como pode um tratado que «não» tem status constitucional revogar uma disposição constitucional. A chave para o entendimento, e que foi adotado pelo STF, é que a Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes de tratados internacionais.
Portanto, segundo o STF, não mais subsiste, no sistema normativo brasileiro, a prisão civil por infidelidade depositária, independentemente da modalidade de depósito, seja voluntário ou necessário, como é o caso do depósito judicial.
Cabe aqui, pois, como estudioso da carreira de Oficial de Justiça, interpretar o significado dessa decisão quando direcionada à prática, pois é nesse campo em que atua o executor de mandados. Pois bem, cumpre perceber que o depositário (qualquer que ele seja) não mais poderá ser preso em caso de infidelidade. Ou seja, penhorado um bem, se o depositário desfizer-se do mesmo, não mais corre o risco de prisão civil. Isso, por certo, gera uma dificuldade para o trabalho do Oficial, uma vez que a penhora realizada poderá resultar em nada, se já não mais se tem a prisão como meio de coerção.
Não se trata de ir contra a corrente humanitária, concessiva de direitos humanos, mas sim de refletir sobre a efetividade do processo de execução sem tal instrumento. Não se advoga aqui a tese de que deve prender-se todos aqueles que devem e não pagam. Mas tem que se atentar para os casos em que o depositário descumpre deliberadamente um ordem judicial, um munus público, conduta esta, hoje, que encontra sem nenhuma sanção. De fato, a gravidade desta conduta poderia, inclusive, ganhar status criminal, uma vez que se assemelha à figura da resistência e desobediência, sendo até mesmo mais grave que várias condutas penalmente tipificadas.
Temos que ter cautela com a concessão excessiva de direitos humanos, principalmente quando elas não são acompanhadas pelos seus correlatos «deveres humanos». Porque se por um lado fala-se dos direitos humanos do depositário, porque do outro não fala dos direitos humanos do exequente.
A decisão tomada pelo STF deixou vulnerável o processo de execução, isto é certo. Mas não pode significar que não temos mais meios para realizá-lo. Portanto, seguindo a disposição do Código de Processo Civil, a penhora deverá ser, mais do que nunca, acompanhada da remoção do bem. Deixá-lo com o executado é um risco que comprometeria toda a execução.
De certa forma, considerava o processo de execução, após as leis 11.232/05 e 11.382/06, bastante agressivo, pois determinava a remoção do bem ab initio, logo após a citação, sem que houvesse o pagamento em três dias. Considero que, embora o prazo tenho sido estendido de 24h para 3 dias, ainda é muito curto para que o executado tenha tempo suficiente para organizar um pagamento, nem tempo hábil para preparar eventual defesa. Desta forma, é quase certo que o Oficial de Justiça deverá fazer a penhora de bens e a sua consequente remoção logo após a citação.
Daí extrai-se que os depósitos judiciais deverão ter estrutura condizente com o atual sistema de execução, para albergar a quantidade de bens que não mais poderá (e nem se recomenda mais) ficar nas mãos do exequente.
Por fim, diante do atual sistema de execuções, penso que o legislador deverá prover outros meios que assegurem a eficiência do processo executivo, uma vez que não mais existe o último reduto da «prisão civil», mas que sejam condizentes com o projeto de direitos humanos que o Brasil defende.
Ademais, antes da decisão do STF, entendíamos que o encargo de depositário fiel só poderia ser contraído por pessoa física e nunca por pessoa jurídica. Isto porque como a sanção para o descumprimento do encargo era a constrição à liberdade de locomoção e essa não teria eficácia se aplicada a uma pessoa jurídica. Muito embora a referida decisão tenha vindo para requestionar alguns paradigmas, acredito ainda que apenas pessoa física poderá ser nomeada como depositário fiel, para que seja individualmente identificado o responsável pela guarda dos bens. Interessante é a questão de quando funcionário de pessoa jurídica é nomeado como depositário fiel dos bens, mas depois não é mais empregado desta. Neste caso, o STJ tinha entendido no sentido do não cabimento ordem de prisão contra o empregado. Hoje, por certo, não cabe mais.

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