segunda-feira, 25 de maio de 2009

Conteúdo Essencial de Direitos Fundamentais

INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende oferecer uma alternativa para a compreensão do núcleo essencial dos direitos fundamentais, a partir de uma construção filosófica que contrapõe o eu-pessoal com o eu-social na construção de uma proposta cultural do direito.
Para aí chegar, é indispensável compreender que o direito não é composto apenas na sua acepção ahistórica, ou apenas na histórica, mas sim de uma maneira que reconheça a universalidade do instituto e a sua revelação nos variados contextos históricos.

Conceito e Fundamento de núcleo essencial
Nichts ist ohne Grund.[1] Cabe no primeiro momento, portanto, encontrar a razão de ser da concepção de núcleo essencial. Logo em seguida delinear um breve conceito que sirva para uma compreensão inicial do instituto.
A garantia do conteúdo essencial foi criada para controlar a atividade do Poder Legislativo, visando evitar os possíveis excessos que possam ser cometidos no momento de regular os direitos fundamentais.[2] Isto porque os direitos fundamentais, por terem natureza notadamente principiológica, acabam por ter conteúdos semântico-jurídicos geralmente abertos, necessitando da atividade do legislador infra-constitucional para dar-eficácia.[3]
Diversas constituições, mormente as do período pós-guerras, têm desenvolvido, ora de forma sistematizada ora de forma difusa, inúmeros limites à intervenção legislativa restritiva no sítio dos direitos fundamentais. Ao contrário do Estado Liberal[4], percebe-se uma manifestação de desconfiança em relação à atividade do legislador, levando a um deslocamento da questão da justiça do campo da lei para o campo da Constituição.
Período em que a democracia vergou sob furiosos assaltos dos facistas, de uma parte, e dos socialistas autoritários, de outra. Mas os regimes totalitários, destruindo completamente as liberdades democráticas, continuavam no entanto a exigi-las. Todos haviam, segundo Gaetano Mosca, “guardado o simulacro das instituições democráticas, dos Parlamentos mudos e das eleições cujo resultado se conhecia de antemão”.[5]
O surgimento desta garantia, diz Jorge Reis Novais, “está estreitamente ligado à história da Constituição de Weimar, onde às normas constitucionais de direitos fundamentais se atribuía um caráter meramente programático, não se reconhecendo à garantia por eles proporcionada mais que aquilo que já decorria do princípio da legalidade da Administração, com os corolários da reserva e preferência de lei”.[6] Durante a época da Constituição de Weimar, os direitos fundamentais eram praticamente esvaziados de conteúdo pelo trabalho do Poder Legislativo, além de não existir o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, fazendo necessária a criação de um mecanismo, como a garantia do conteúdo essencial, que limitasse a atividade legislativa e salvaguardasse os direitos fundamentais.
Afinal, na medida em que a intervenção legislativa no campo desses direitos pode assumir uma configuração restritiva, sob o pretexto de explicitar limites imanentes pode o legislador, ainda que virtualmente, violá-los. Há que se admitir, logo, a “necessidade de se impor limites à atividade legislativa no âmbito dos direitos fundamentais para justamente salvaguardar uma série de reivindicações e conquistas contra uma eventual ação erosiva do legislador ordinário”.[7]
De ressaltar, porém, quem enquanto princípio expressamente consagrado na Constituição ou enquanto postulado constitucional imanente, o princípio da proteção do núcleo essencial destina-se a evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental decorrente de restrições descabidas, desmesuradas ou desproporcionais.[8]
Neste intuito, alguns ordenamentos constitucionais consagraram expressamente a salvaguarda do núcleo essencial (p.ex. art. 19, II da Lei fundamental alemã de 1949; no art. 18, III da Constituição portuguesa; e a Constituição espanhola de 1978, art. 53, n° 1).[9] De acordo com a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, p.ex., em seu art 19.2: “em caso algum pode um direito fundamental ser afetado no seu conteúdo essencial”.
Diversas são as sistematizações (expressas ou implícitas) dos limites dos limites. Em todas elas encontra-se a contemplação do princípio da preservação do núcleo essencial do direito restringido como limite intransponível. É este princípio que impõe ao legislador uma barreira não superável no que tange com sua atividade restritiva de direitos fundamentais, evitando que ocorra um processo de dessubstancialização da Constituição.[10]
Há, em que pese tudo, um notório desgaste, segundo Novais, entre o enorme sucesso que a fórmula encontrou e o reduzido sentido jurídico útil e autônomo – se é que algum existe – que, decorrido meio século sobre a sua primeira consagração positiva, é possível atribuir a esta garantia constitucional do conteúdo essencial”. [11]
Os problemas enfrentados pelo direito atualmente, tão bem apresentados pelo professor Castanheira Neves, e que refletem nos institutos jurídicos, vão ao ponto de atingir inclusivamente a sua subsistência, o qua tale do direito, ao pôr justamente em causa não só o seu verdadeiro sentido, mas a possibilidade mesma do seu sentido.[12] Desse modo é de se perguntar se algum sentido ainda resta ao princípio (ou postulado) da proteção do núcleo essencial, uma vez que já não temos um paradigma de sua interpretação, e o mesmo encontra sujeito a diversas teorias conflitantes. O que interessa, portanto, é saber se antes esse conflito é possível extrair uma proposta condizente com a culturalidade dialética inter-subjectiva típica do próprio direito.
[1] Nada existe sem razão. HEIDEGGER, Martin. A essência do fundamento. Coleção: Biblioteca da Filosofia Contemporânea. Lisboa: Edições 70, 2008. p. 12.
[2] GAVARA DE CARA, Juan Carlos. Derechos fundamentales y desarrollo legislativo. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1994. apud LOPES, Ana Maria D’Ávila. A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 41 n. 164 out./dez. 2004.
[3] GOMES CANOTILHO, J.J. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. P. 261.
[4] O legislador era em quem se confiava para combater os abusos do Rei. Como disse Rousseau: Em todos os sentidos, o legislador é no Estado um homem extraordinário; se o deve ser por seu engenho, não o é menos por seu emprego (...) ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Trad. Pedro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002. p.47.
[5] MOSCA, Gaetano. História das Doutrinas Políticas. Trad. Marco Aurélio de Moura Matos. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987, p. 366.
[6] (NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 779.)
[7] BIAGI, Cláudia Perotto. A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais na jurisprudência constitucional brasileira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris editor, 2005, p. 74. apud SCHIER, Paulo Ricardo. Fundamentação da Preservação do Núcleo Essencial na Constituição de 1988. Disponível em: www.conpedi.org
[8] HESSE, Grunzüge des Verfassungsrechts, p. 134 apud MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 316.
[9] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 315.
[10] (RODRIGUEZ-ARMAS, Magdalena Lorenzo. Analisis del contenido esensial de los derechos fundamentales. Granada: Editorial Comares, 1996, p. 74 e ss. apud SCHIER, Paulo Ricardo. Fundamentação da Preservação do Núcleo Essencial na Constituição de 1988. Disponível em: www.conpedi.org
[11] NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 779.
[12] CASTANHEIRA NEVES, A. Digesta. vol. 3. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. Pag. 43

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